sábado, 10 de abril de 2010

O melhor direito possível


Vou confessar uma coisa. Semana passada, na aula de direitos das obrigações, fiz um teste interessante com a turma. Usei a idéia das convicções de political morality do Dworkin para realizar uma construção hermenêutica das soluções jurídicas para um problema especial, conhecido entre os civilistas, da escolha nas obrigações alternativas quando ocorre: a) valorização de uma prestação e manutenção do preço da outra; b) valorização de ambas as prestações; c) desvalorização de uma e manutenção do preço da outra; d) desvalorização de ambas; e e) valorização de uma e desvalorização da outra. Como sabemos, não há uma resposta clara do direito positivo para essas questões. E as doutrinas divergem bastante, tanto que alguns doutrinadores sequer entram nesse assunto.


Claro que existem mais variáveis empíricas importantes, como a questão da escolha ser do credor ou do devedor, além da questão da valorização ou desvalorização ocorrer antes ou depois da escolha/concentração e antes ou depois da tradição/entrega da prestação. Mas isso não vem ao caso agora. Quero apenas demonstrar o teste e as conclusões que tirei dessa experiência.

Fiz o seguinte exercício de reflexão com os alunos: já que não há regras claras sobre essa questão, procurei desenvolver com os alunos uma hermenêutica construtiva no estilo de Dworkin. Coloquei todas as variáveis empíricas no quadro e apelei para as convicções pessoais de moralidade “pessoal” dos alunos para ver se nós encontrávamos uma moralidade política capaz de justificar as interpretações construtivas que estávamos fazendo a respeito das soluções.


Como sabemos, a interpretação de Dworkin procura encontrar aquela interpretação que revela o direito do modo mais adequado (ajustado às práticas) e também mais justificado (justificante das nossas práticas). Esse juízo de adequação e justificação, contudo, não é simples como uma dedução lógica ou analógica do “espírito” do direito civil brasileiro, já que não se tratam de questões de correção semântica e sim de questões de coerência tanto em relação às nossas convicções de moral particular quanto às convicções de moralidade política de uma comunidade de princípios, considerando também as tradições autênticas (aqui fica boa a metáfora da decisão como um capítulo, e não um começo, da história do projeto político da comunidade) e especialmente a necessidade de justificar essa interpretação como a mais adequada do ponto de vista da integridade com as virtudes da equidade do sistema político, da justiça na distribuição das oportunidades e do devido processo legal.


Claro que não falei do Dworkin, afinal era uma aula de direito civil, mas ao apelar para as convicções de moral particular dos alunos, para ver se encontrávamos princípios de moralidade política maiores, para confrontá-los e usá-los no caso, eu falei de equidade, justiça e de integridade da solução. Só isso.

Para a construção de nossa base de referência, no caso, chegamos juntos (sim, juntos!) à conclusão de que um princípio importantíssimo de moral política no caso seria a liberdade de escolha da prestação alternativa, que não poderia ser suprimida a nenhum pretexto pragmático de orientação às conseqüências, de eficiência econômica, de políticas públicas ou qualquer outro tipo de exigência sistêmica. Outro princípio que logo veio à tona foi o do equilíbrio da relação obrigacional, que também é igualmente importante e não pode ser desprezado. Sem precisar ponderar – para justificar o afastamento do princípio que fica travando a solução, como recomendaria Alexy e sua turma (tá, desculpa, fui injustamente irônico agora) –, nós conseguimos construir soluções coerentes tanto com o princípio da liberdade contratual quanto com o do equilíbrio na relação contratual: garantimos o direito de escolher as prestações alternativas tanto para o credor quanto para o devedor (na tradição do pacta sunt servanda), ao mesmo tempo em que garantimos o direito de nenhum deles ser surpreendido com um desequilíbrio superveniente da relação obrigacional (na tradição dorebus sic stantibus).


Mas com isso nós cumprimos só a primeira dimensão da interpretação do juiz Hércules – a da adequação –, faltava testar se as soluções justificavam as práticas recomendadas por essa interpretação. E essa justificação foi possível com base na própria integridade das soluções entre as perspectivas do credor e do devedor e entre elas e os princípios da liberdade e do equilíbrio da relação obrigacional.


Querem saber? Foi interessante o teste. Realmente a turma fica com a convicção de que as soluções que nós construímos são as mais adequadas e justificadas (as únicas corretas!), apesar da obscuridade da lei a respeito. E apesar também das divergências doutrinárias e, principalmente, apesar das divergências no nível das convicções pessoais de cada um dos alunos. E mais: do ponto de vista da prática pedagógica, um assunto que, convenhamos, é chatíssimo no âmbito da dogmática, tornou-se muito agradável, interessante e importante. Exatamente como Dworkin justifica a interpretação correta, em analogia à interpretação literária, como aquela que revela o que o direito tem de melhor, o seu melhor valor, a sua melhor virtude.

Depois desse teste prático-acadêmico interessante, convenci-me: taking Dworkin seriously. Em sua homenagem, quero lembrar uma de suas frases geniais que está no final do Law’s Empire: “O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo”.


Outro dia eu conto experiências com Luhmann, Habermas e alguns pós-estruturalistas franceses que eu gosto. Já adianto que nem todas foram interessantes. Mas afinal, por que compartilhar só as boas? A melhor interpretação das nossas práticas pode ser também aquela que revela exatamente o que elas têm de pior – porque também Dworkin não escapa do paradoxo de que é a pior interpretação que justifica a outra: a melhor.


Rafael Simioni - Dogmático Anônimo